segunda-feira, 13 de junho de 2011

Alforria

Não sou muito chegado em postagens desta natureza, mas havia comentado com algumas pessoas que ia colocar um sumário do que foram estes últimos três meses pra mim.

Pra quem não sabe, eu sou doutorando (não médico, de quem faz doutorado). Os doutorados em geral têm uma etapa chamada "exame de qualificação", em que é avaliada sua condição de continuar no doutorado ou não. Para alguns doutorados, é uma mera formalidade. Um artigo enviado, uma pré-banca da tese, onde vai ser avaliado o andamento de sua tese.

No meu caso não, o doutorado é uma prova, ou "a" prova.

São 5 grandes temas escolhidos para a prova, cada tema desse é genérico o suficiente para conter uma disciplina inteira, mas a amplitude da prova permite cair qualquer coisa que envolva o tema. Destes 5 , um é sorteado numa sexta-feira para ser realizada a prova na segunda. 80% do que você estudou não vale nada no grande dia.
Em favor do doutorando, são 5 temas relativos às disciplinas obrigatórias no doutorado. Não há nada exatamente "novo", mas há disciplinas que foram pagas há bastante tempo, outras mudaram de professor e de abordagem dão uma embaralhada nas cartas.

O fato é que o assunto é imenso e essa postagem comenta algumas coisas que aconteceram neste nestes dois meses.
Afastei-me de alguns dos meus meios, notadamente aqui do blog. Não conseguia parar para escrever. Sempre que eu parava as atividades formais, tentava dispersar meu pensamento e escrever no blog sempre foi um exercício de concentração. O cérebro cansado não cooperava muito.

Isso não significa que eu não tinha o que escrever, muito pelo contrário. As impressões estão sempre aí. O fato de ter o que escrever mas não conseguir expressar me angustiava, como se eu tivesse querendo gritar sem um pingo de voz. Aliás, todas as minhas leituras não-acadêmicas ficaram encostadas. Lendo o dia todo, o dia todo, minha leitura universal pré sono rendia umas 5 ou 6 folhas.

Essa condição me deixou na situação curiosa. Apesar de estar estudando muito, de estar pondo muita coisa na cabeça, me sentia cada vez mais burro e limitado. Os conhecimentos de faculdade desta natureza engrandecem, mas dentro de um espectro limitado do que eu já tinha visto e do viés da minha área. Não li, não viajei (quem me conhece sabe da importância disso pra mim), não ouvi músicas novas. Via meu lado subjetivo escorrendo pro limbo. Estive perdendo um pouco a capacidade de transgredir, de reflexões mais profundas, de conseguir ler uma poesia, ter espírito para as coisas leves, gostos apurados. Embrutecia. Como pessoa, isso é muito mais valioso do que saber as condições de uso da função de Durbin-Watson ou as conceituações envolvendo cadeias de Markov.

Eu ganhei um vício mental, um forte argumento pra procrastinação. Frequentemente quando surgia algum problema, vinha na minha mente. "Depois da qualificação eu vejo". Eu não conseguia parar para resolver determinadas coisas, sentia como tempo perdido. Para piorar, eu estava atrasado comparado a todos os meus amigos de curso, isso aumentava a pressão. O ar condicionado do carro quebrou, o pneu parece que está com um prego, o meu violão desmontou, meu tênis tá apertando, o celular novo veio todo desconfigurado, músicas para tocar com os amigos, a cadeira tá desregulada,voltar a fazer cooper e a jogar poker , ajeitar o perfil do facebook, o passaporte, o computador precisando formatar, umas visitas que estou devendo, o quarto uma bagunça... Tudo isso só depois da qualificação.

Aliás, meu quarto está um caso a parte, meu birô tem tanto livro que não tá tendo nem espaço pra escrever, papel pra tudo que é lado. Tá parecendo o quarto do paulo Bruscky


tá vai, meu quarto vai continuar uma bagunça depois da qualificação

A proximidade e o volume de coisas pra estudar me fizeram tomar algumas atitudes mirabolantes em prol do meu estudo. Vi a final do campeonato estudando (tá, só no segundo tempo quando o boi já havia deitado), estudei várias madrugadas de sexta e de sábado. Carreguei resumos para ler enquanto dirigia. Em maio todo e nos 12 primeiros dias de junho, contem 2 dias que eu consegui dormir 8 horas. Saia às vezes à noite e quando voltava estudava. Estudei na fila dos correios. Estudei na emergência duas vezes quando minha mãe sofreu um acidente, abria lá o livro e lia enquanto esperava a vez dela na fila. Não vou me esquecer tão cedo da mulher que tava do meu lado "Cansei de olhar pra lá, vou ficar olhando aqui as matemática do menino" seguido de um monte de pergunta que ela não queria saber a resposta, mas julgava ser fundamental para socializar comigo.

Uma das razões para eu ter que me sujeitar ao ritmo intenso é que, concomitante a estas coisas todas, a vida acadêmica não parou. Dei aulas no estágio-docência, escrevi e traduzi dois artigos, analisei 6 projetos de pesquisa e preenchi a lista de requisitos, além de fazer a arguição sobre minhas impressões. Também tinha que ir três vezes por semana ao laboratório e estudar pra uma disciplina de "tópicos avançados" que tinha 6 alunos e 7 professores na sala para analisar um artigo avançado da área. Os alunos revesavam na apresentação do artigo, cada semana um e quem não fosse apresentar tinha que ler, estudar e opinar do mesmo jeito.
Além disso tudo, um pesquisador internacional veio ao departamento e fez algumas sessões extras com alguns professores, que contaram com alguns alunos para apresentar temas para discussão pra ele. E quem foi convocado para apresentar "alguma coisa para discutir" toda em inglês para o pesquisador e depois apresentar espremendo o inglês?

Não sendo suficiente, ainda tratava de acalmar uns amigos mais nervosos. Via telefone, e-mail, msn, tentava ajudar como fosse . Às vezes, estava estudando algo completamente diferente e parava pra tentar dar uma força a outra pessoa que estivesse com problemas. Isso acabou gerando situações inusitadas. Dois dias antes de sortear um ponto, 23:45, liga um amigo pra mim com uma voz meio pesada:

- Olha, viste a fórmula tal, mas com três variáveis? ela é assim..."
e começou a dizer uma fórmula completamente maluca, que não tinha fim. Respondi
- Isso existe?
- Existe pô. O professor deu em sala de aula e eu tenho certeza que vai cair.
- Certeza?
- É pô, ele falou, vê aí se tu encontra...

Desliguei o telefone e fui procurar a tal fórmula de três variáveis na madrugada. De fato, não existia. Depois eu descobri que ele tinha tomado remédio pra dormir e já tava meio "drogado" nesta hora

Pra dificultar, descobri dois dias antes do sorteio que um dos temas tinha umas 150 páginas que eu não tinha estudado. Preferi não entrar na pilha de ter que estudar em cima da hora (estudar e revisar tem duas conotações bem diferentes nestas horas). Claro, pela lei de Murphy, este tema tinha 99% de chance de ser sorteado e assim foi.
Estudei o sábado inteiro, estudei o domingo inteiro até 1:30 da manhã.

A prova foi agora pela manhã e acho que foi razoável, hoje foi minha alforria!

Foram tempos muito movimentados, estou exausto, mais gordo, mais branco e com mais olheiras, tava num processo de ursopandização. Apesar de tudo que me custou, fico feliz e ter chegado até aqui, de ter avançado significativamente, de ter construído coisas como a a confiança da minha orientadora no caso do pesquisador estrangeiro. Pude ver como me comporto em situações como essa de grandes objetivos e muito esforço pessoal, numa época que premia a malandragem.

Mas a guerra ainda não acabou, descansar um pouco e voltar pra batalha.

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